"Que fostes ver no deserto?"
Duas vezes por ano, em dois tempos diferentes, a Igreja menciona o deserto. A primeira vez, no começo do ano litúrgico, no Tempo do Advento, que estamos vivendo agora. A segunda vez, mais adiante, no Tempo da Quaresma. Ambos são tempos de preparação para as mais importantes solenidades de Nosso Senhor Jesus Cristo – o Advento, para o Natal; a Quaresma, para a Páscoa.
Não é, pois, por acaso que o deserto aparece. É um lugar de desolação, de solidão, de aridez, de condições difíceis e extremas de sobrevivência, onde o homem, absolutamente só, pode defrontar-se consigo mesmo. Mas também é um lugar de encontro. Ali, onde não há mais defesas, salvaguardas ou distrações, onde o homem não pode ser mais ninguém a não ser ele mesmo, Deus o aguarda. Do deserto Deus, o Criador, chama e espera por Sua criatura.
E esse chamado, inscrito no coração humano, ressoa em todos os homens de todos os tempos. Foi o que fez os homens de Israel do tempo de Jesus procurar João Batista, a voz que clama no deserto, para ouvirem de sua boca o apelo de Deus à conversão.
Hoje, o deserto físico pode estar longe de nós. Mas o deserto espiritual está sempre acessível a cada alma que, sentindo os apelos de seu Senhor, deixar por instantes o vazio cheio de ruído do mundo que a cerca para ouvir em si mesma a voz silenciosa do Precursor: preparai os caminhos do Senhor, aplainai suas veredas.
Bem-aventurado Charles de Foucauld (1858-1916), eremita e missionário no Saara
Carta ao Padre Jerónimo de 19 de Maio 1898
É preciso passar pelo deserto e aí permanecer para receber a graça de Deus; é lá que nos esvaziamos, que extraímos de nós tudo o que não é de Deus e que esvaziamos completamente esta pequena casa da nossa alma para deixar todo o espaço apenas para Deus. Os judeus passaram pelo deserto, Moisés viveu lá antes de receber a sua missão, São Paulo e São João Crisóstomo prepararam-se no deserto. [...] É um tempo de graça, é um período pelo qual toda a alma que quer produzir frutos tem necessariamente de passar. Ela precisa deste silêncio, deste recolhimento, deste esquecimento de todo o criado, no meio dos quais Deus estabelece o Seu reino e forma nela o espírito interior: a vida íntima com Deus, a conversa da alma com Deus na fé, na esperança e na caridade. Mais tarde, a alma produzirá frutos exactamente na medida em que o homem interior se tiver formado nela (Ef 3, 16). [...] Não se dá o que se não tem e é na solidão, nesta vida apenas e só com Deus, neste recolhimento profundo da alma que esquece tudo para viver exclusivamente em união com Deus, que Deus Se dá inteiramente àquele que se dá assim a Ele. Dai-vos inteiramente somente a Ele [...] e Ele Se dará inteiramente a vós. [...] Vede São Paulo, São Bento, São Patrício, São Gregório Magno e tantos outros, quão longos tempos de recolhimento e de silêncio! Subi mais acima: olhai para São João Baptista, olhai para Nosso Senhor. Nosso Senhor não tinha necessidade disso, mas quis dar-nos o exemplo.
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